Pular para o conteúdo principal

Febre crepuscular


O anoitecer era o momento do dia favorito de Iara. Enquanto o sol se escondia atrás dos montes e as primeiras estrelas apareciam do outro lado do céu, ela contemplava o degradê da imensidão azul.

Gostava da sensação de torpor que aquela hora a fazia sentir. Era como se seu corpo todo adormecesse, junto com o poente. Ela até inventou um nome para essa sensação: febre crepuscular.

Quando o último raio de luz se apagava, Iara saía de seu transe e, como se nada tivesse acontecido, voltava a nadar e a encantar pescadores distraídos. A sereia do rio tinha inveja daqueles que tinham pernas e podiam sair mundo a fora.

Ela tinha o sonho de escalar montanhas, só para ver onde o sol se escondia durante a noite e onde a lua dormia durante o dia. Sonho impossível para ela. Devaneio, diziam-lhe os peixes.

Seus dias eram longos demais. O único instante em que ela esquecia de sua obsessão pela terra firme era durante o crepúsculo. Aquele era o seu instante de paz.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Hoje de manhã

Ela sorriu e soltou um riso afetado, num misto de consentimento e temor.  Nada estava claro naquele futuro obscuro que abria suas cortinas a sua frente.  Deixar seu tesouro para trás, por poucas horas que fossem, era como atravessar um portal para um deserto. Mais que isso, para o vazio. E porque o tempo custasse a passar seu coração se afligia. Os olhos controlavam lágrimas de saudade. O tic tac do relógio soava como estacas em seu coração. Mas, o tempo, aquele sábio senhor de passos lentos, tem muitas faces. É também médico talentoso, administrador garboso e torturador impiedoso.

Autoanálise

Ao longo da vida cada um cria seus dilemas. Suas certezas e incertezas. Cria suas máscaras, suas valas, sua amarras. Com Maria Amélia não foi diferente. Vivendo intensamente o alto de seus 33 anos guardava segredos íntimos, culpas solitárias. Mas usava outras máscaras para disfarçar sua melancolia. Se mostrava forte, durona. Afetada. Espirituosa. Disponível. Crítica em demasia. Chata. Superficial. Queria ser vista assim. Afinal, essa era sua zona de conforto. Quase nunca chorava em público. Quase nunca discutia. Engolia o choro e a raiva. Na adolescência, não havia travesseiro nem diário para compartilhar suas dúvidas. Dividia o quarto com dois irmãos dedo-duros. Sua mãe nunca fora boa em guardar segredos, mas bisbilhotar! Ah, isso ela sabia como ninguém. O refúgio de Maria Amélia era o chuveiro. A água quente lavava a face, levava as tristezas ralo abaixo e abafava os soluços. O tempo passou. Ela cresceu. Saiu de casa. Se casou. Até que numa noite morna de dezembro se lem...